Publicado originalmente na Revista A.B.C, edição de
30/11/1918
Não é
bem um convento, onde estou há quase um mês; mas tem alguma coisa de monástico,
com o seu longo corredor silencioso, para onde dão as portas dos quartos dos
enfermos.
É um
pavilhão de hospital, o Central do Exército; mas a minha enfermaria não tem o
clássico e esperado ar das enfermarias: um vasto salão com filas paralelas de
leitos.
Ela é,
como já fiz supor, dividida em quartos e ocupo um deles, claro, com uma janela
sem um lindo horizonte como é tão comum no Rio de Janeiro.
O que
ela me dá é pobre e feio; e, além deste contratempo, suporto desde o clarear do
dia até à boca da noite o chilreio desses infames pardais. No mais, tudo é bom
e excelente nesta ala de convento que não é todo leigo, como poderia parecer a muitos,
pois na extremidade do corredor há quadros de santos que eu, pouco versado na
iconografia católica, não sei quais sejam.
Além
desses registros devotos, no pavimento térreo, onde está o refeitório, há uma
imagem de Nossa Senhora que preside as nossas refeições; e, afinal, para de
todo quebrar-lhe a feição leiga, há a presença das irmãs de São Vicente de
Paula. Admiro muito a translucidez da pele das irmãs moças; é um branco pouco
humano.
A
minha educação céptica, voltairiana, nunca me permitiu um contato mais contínuo
com religiosos de qualquer espécie. Em menino, logo após a morte de minha mãe,
houve uma senhora idosa, Dona Clemência, que assessorava a mim e a meus irmãos,
e ensinou-me um pouco de catecismo, o “Padre-Nosso”, a “Ave-Maria” e a “Salve-Rainha”,
mas bem depressa nos deixou e eu não sabia mais nada dessas obrigações
piedosas, ao fim de alguns meses.
Tenho
sido padrinho de batismo umas poucas de vezes e, quando o sacerdote, na
celebração do ato, quer que eu reze, ele tem que me ditar a oração.
A
presença das irmãs aqui, se ainda não me fez católico praticante e fervoroso,
até levar-me a provedor de irmandade como o Senhor Miguel de Carvalho,
convenceu-me, entretanto, de que são úteis, senão indispensáveis aos hospitais.
Nunca
recebi (até hoje), como muitos dos meus companheiros de enfermaria, convite para as suas cerimônias religiosas.
Elas, certamente, mas sem que eu desse motivo para tal, me supõem um tanto
herege, por ter por aí rabiscado uns desvaliosos livros.
Por certo,
no seu pouco conhecimento da vida, julgam que todo escritor é acatólico. São,
irmãs, até encontrarem um casamento rico que os faz carolas e torquemadescos.
Eu ainda espero o meu...
Testemunha
do fervor e da dedicação das irmãs no hospital em que estou, desejaria que
fossem todas elas assim; e deixassem de ser, por bem ou por mal, pedagogas das
ricas moças da sinistra burguesia, cuja cupidez sem freio faz da nossa vida
atual um martírio, e nela estiola a verdadeira caridade.
Não
sei como vim a lembrar-me das causas nefandas daí de fora, pois vou passando
sem cuidado, excelentemente, neste coenobium semileigo em que me meti. Os meus
médicos são moços dedicados e interessados, como se amigos velhos fossem, pela
minha saúde e restabelecimento.
O
doutor Alencastro Guimarães, o médico da minha enfermaria, colocou-me no braço
quebrado o aparelho a que, parece, chamam de Hennequin!
Sempre
a literatura e os literatos...
(...)
Lima Barreto
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