Lima Barreto
Estamos em maio, o mês
das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há
em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo e, de novo, me
chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em
sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me traz se misturam
recordações da minha meninice.
Agora mesmo estou a
lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e
disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e
nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.
Na
minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um
skyscraper1; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.
Não me recordo bem se
ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.
Havia
uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão.
Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o
souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço,
vivas...
Fazia
sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria.
Era
geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação,
deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.
Houve
missa campal no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me
recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a “Primeira
Missa”, de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra
vez... Houve o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas,
indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando
grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas. Construíram-se estrados
para bailes populares; houve desfile de batalhões escolares e eu me lembro que
vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo
àquela fieira de numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao
anoitecer.
Ela me
parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais
a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes
carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado
à traseira.
Eu
tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o
horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa
escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam,
faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem
os aspectos hediondos.
(...)
Fontes:
Imagem: Brasiliana Fotográfica
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