Publicado no periódico A.B.C., em 8/6/1918
Certas
manhãs, quando desço de bonde para o centro da cidade, naquelas manhãs em que,
no dizer do poeta, um arcanjo se levanta de dentro de nós; quando desço do
subúrbio em que resido há quinze anos, vou vendo, pelo longo caminho de mais de
dez quilômetros, as escolas públicas povoadas.
Em
algumas, ainda surpreendo as crianças entrando e se espalhando pelos jardins à
espera do começo das aulas; em outras, porém, elas já estão abancadas e
debruçadas sobre aqueles livros que meus olhos não mais folhearão, nem mesmo
para seguir as lições de meus filhos. Brás Cubas não transmitiu a nenhuma
criatura o legado da nossa miséria; eu, porém, a transmitiria de bom grado.
Vendo
todo o dia, ou quase, esse espetáculo curioso e sugestivo da vida da cidade,
sempre me hei de lembrar da quantidade das meninas que, anualmente, disputam a
entrada na Escola Normal desta cidade; e eu,
que estou sempre disposto a troçar as pretensões feministas, fico interessado
em achar no meu espírito uma solução que satisfizesse o afã do milheiro dessas
candidatas a tal matrícula, procurando com isso aprender
para ensinar, o quê? O curso primário, as primeiras letras a meninas e meninos
pobres, no que vão gastar a sua mocidade, a sua saúde e fanar a sua beleza.
Dolorosa coisa para uma moça...
A
obscuridade da missão e a abnegação que ela exige cercam essas moças de um halo
de heroísmo, de grandeza, de virtudes que me faz, naquelas manhãs em que sinto
o arcanjo dentro da minha alma, cobrir todas elas da mais viva e extremada
simpatia. Eu me lembro também da minha primeira década de vida, de meu primeiro
colégio público municipal, na Rua do Resende, das suas duas salas de aula, daquelas
grandes e pesadas carteiras do tempo e, sobretudo, da minha professora – Dona
Teresa Pimentel do Amaral – de quem, talvez se a desgraça, um dia,
enfraquecer-me a memória, não me esqueça de todo.
(...)
(...)
Lima Barreto
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