Diariamente,
quando me ia sentar à minha banca, na secretaria do Estado, onde sou oficial,
aquele volume de legislação me namorava. Não era velho de impressão, nem de
encadernação, mas, por aqueles anos, quase centenário de texto, ele me
amedrontava de tal modo na sua velhice espiritual que, instintivamente,
afastava o olhar e, com azedume, punha-me a folhear o registro dos decretos de
1900 em diante, era do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Entretanto,
por mais que ele dançasse por sobre a estante próxima, constantemente aquela
sua lombada escura com letras douradas mirava-me e olhava-me com um olhar tão
meigo que, por vezes, ouvi de sua boca estas palavras: abri-me e lede-me.
E
sempre repelia-o, fugia dele como de um espectro. A meus olhos, aquele livro
era como um esqueleto: menos que uma múmia, o Tempo, além de lhe ter tirado a
alma, o espírito, descarnara-o, tirando-lhe as substâncias moles, assimiláveis
prontamente, aproveitáveis à continuação da vida, deixando somente um amontoado
de ossos lisos a branquear por cima das secretárias dos amanuenses ou nas
catacumbas das estantes burocráticas. Antes, pensei eu, ficassem aqueles ossos expostos
às águas meteóricas aciduladas que lhes dissolvessem os fosfatos ou à
curiosidade dos paleontologistas sociais que, nas suas pesquisas pacientes,
desagregassem aquela ossada, osso por osso, para bem decifrarem os mistérios
dos agrupamentos humanos.
(...)
Lima Barreto