Publicado originalmente na Gazeta da Tarde, em
26/05/1911
Os
jornais anunciaram, entre indignados e jocosos, que um mendigo, preso pela
polícia, possuía em seu poder valores que montavam à respeitável quantia de
seis contos e pouco.
Ouvi
mesmo comentários cheios de raiva a tal respeito. O meu amigo X, que é o homem
mais esmoler desta terra, declarou-me mesmo que não dará mais esmola. E não foi
só ele a indignar-se. Em casa de família de minhas relações, a dona da casa,
senhora compassiva e boa, levou a tal ponto a sua indignação, que propunha se
confiscasse o dinheiro ao cego que o ajuntou.
Não
sei bem o que fez a polícia com o cego. Creio que fez o que o Código e as leis
mandam; e, como sei pouco das leis e dos códigos, não estou certo se ela
praticou o alvitre lembrado pela dona de casa de que já falei.
O
negócio fez-me pensar, e, por pensar, é que cheguei a conclusões diametralmente
opostas à opinião geral.
O
mendigo não merece censuras, não deve ser perseguido, porque tem todas as
justificativas a seu favor. Não há razão para indignação, nem tampouco para
perseguição legal ao pobre homem.
Tem
ele, em face dos costumes, direito ou não a esmolar? Vejam bem que eu não falo
de lei; falo dos costumes. Não há quem não diga: sim. Embora a esmola tenha
inimigos, e dos mais conspícuos, entre os quais, creio, está M. Bergeret, ela
ainda continua sendo o único meio de manifestação da nossa bondade em face da
miséria dos outros. Os séculos a consagram; e, penso, dada a nossa defeituosa
organização social,
ela tem grandes justificativas. Mas não é bem disso que eu quero falar. A minha
questão é que, em face do costume, o homem tinha direito de esmolar. Isto está
fora de dúvida.
(...)
Lima Barreto
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